Tarifa zero

21/01/2015 - O Estado de SP/Blogs

PAULO SANDRONI

A primeira iniciativa de Tarifa Zero na cidade de São Paulo foi lançada há mais de 65 anos pelo engenheiro Luiz Pereira de Queiroz. A motivação foi o enorme quebra-quebra (e incêndios) de ônibus e bondes que circulavam na cidade, reação ao reajuste de 100% nas respectivas tarifas em 1947. Mais de 30% da frota foi destruída. A proposta era cobrir os custos do serviço com um acréscimo de 50% sobre as contas de luz e força. Os ricos e a classe média que usavam mais energia elétrica pagariam a diferença e os mais pobres que ainda dependiam de lampiões nada pagariam. A proposta não foi aprovada.

Mais de quarenta anos depois, outro engenheiro, Lucio Gregori então Secretario de Transportes durante o governo de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992) lançou proposta semelhante com uma diferença importante: os custos do serviço seriam cobertos por um aumento escalonado do IPTU. A iniciativa foi barrada na Câmara de Vereadores que rejeitou o IPTU progressivo, essencial para o projeto, pois os mais ricos pagariam proporcionalmente mais, e os pobres nada pagariam da mesma maneira que no projeto anterior do Eng. Pereira de Queiroz.

O Projeto. Na Tarifa Zero o transporte seria gratuito para os usuários diretos e as empresas privadas que atuavam no setor seriam pagas pelo custo dos serviços prestados. Para não falar da melhoria social uma vez que todos poderiam se deslocar nessa imensa cidade sem recortar dos salários quantias substantivas que poderiam ser utilizadas para outros fins, como a saúde, a educação, e o lazer, existia uma racionalidade econômica evidente: o custo da cobrança que representava como hoje, cerca de 22% da tarifa seria eliminado. Outra vantagem: a possibilidade de um planejamento das linhas de forma muito mais eficaz o que também reduziria os custos operacionais. Um benefício econômico indireto seria o alívio no trânsito.

Contra sentido dizem alguns: se a tarifa zero implica em aumentar a frota em circulação para dar conta da demanda crescente as ruas ficariam entupidas de ônibus. Um ônibus pode retirar até 80 carros das ruas. Quem provoca os congestionamentos são estes últimos (cerca de 5 milhões na cidade, contra 15 mil ônibus). Um transporte público gratuito (custo zero para o usuário) faria com que aqueles setores de menor poder aquisitivo possuidores de carros deixassem seus veículos em casa (para os fins de semana) dando preferência aos ônibus. Os que ainda não possuíssem teriam menor incentivo para fazê-lo.

Existe uma regularidade no trânsito mostrando que se o número de veículos circulando aumenta 10%, os congestionamentos aumentam mais do que 10% e vice-versa. Tirar carros das ruas torna-se portanto um objetivo primordial, e a tarifa zero poderia contribuir para isso desde que a frota (aumentada) de ônibus em circulação garantisse conforto, confiabilidade e segurança mínimas para os usuários.

Para a classe média, que rejeita se misturar com a "tigrada" dentro de um ônibus (odores, apertos etc.) existira um transporte exclusivo – pago – que começou a operar de forma intermitente em São Paulo desde os anos 80. Durante o governo de Luiza Erundina várias linhas de ônibus especiais foram criadas (passageiros só sentados, ar condicionado, música ambiental etc.) e já estavam tirando carros das ruas, mas durante o governo seguinte – de Paulo Maluf – estas linhas foram desativadas, por pressão dos taxistas cuja clientela em parte se deslocava para estes ônibus especiais.

A Tarifa Zero nos Jogos de Futebol. Embora a tarifa zero não tenha sido aprovada em São Paulo algumas experiências de transporte gratuito para o usuário foram realizadas na cidade. Uma das mais interessantes consistiu no transporte em fins de semana que a Prefeitura, através da então CMTC proporcionava criando linhas especiais para os torcedores que se encaminhavam ao Morumbi nos jogos que envolviam as principais equipes da Capital e o Santos.

O problema é que com vitória ou derrota dos respectivos times as torcidas organizadas depredavam os ônibus e não pagavam a passagem. O prejuízo era grande. No dia seguinte, em geral uma segunda-feira, parte da frota não circulava por se encontrar na manutenção para consertos, e a arrecadação era praticamente nula. O que poderiam fazer um motorista e um cobrador frente a 70 ou mais furiosos membros das torcidas organizadas?

A solução foi acabar com o serviço. Quem quisesse ir ao estádio que fosse por outros meios. Os dirigentes dos principais times reclamaram, pois o público minguou.

Propusemos então a tarifa zero para os usuários. O transporte seria gratuito, mas os clubes nos pagariam entre 1% e 2% da renda obtida nos jogos no Morumbi, dependendo do jogo. Alguns dirigentes chiaram, especialmente o então presidente do Corinthians, o polêmico Vicente Matheus. Mas, por fim foi celebrado um acordo, com ganhos para todos: o público dos jogos se manteve e nosso custo operacional diminuiu – não precisávamos colocar o cobrador – e as depredações foram consideravelmente reduzidas. Além disso, os 2% da renda dos jogos das finais cobriam mais do que o custo do transporte…

Mas, colocamos uma ameaça explícita para as torcidas organizadas: se as depredações prosseguissem nós retiraríamos os ônibus outra vez. O sistema funcionou. Àqueles que afirmavam que o povo não dá valor, que suja, destrói, e vandaliza os serviços gratuitos (um dos argumentos contra a tarifa zero) a experiência constituía um bom contra exemplo.

Enquanto a Tarifa Zero não vem. Embora alguns segmentos da sociedade – idosos, estudantes de baixa renda – já pertençam ao clube dos tarifa zero em São Paulo, uma das formas de melhorar a situação é a criação de corredores exclusivos. Um pequeno relato pode nos dar uma ideia do impacto que um sistema como esse tem na vida das pessoas.

Um dos momentos mais gratificantes de minha vida como administrador público ocorreu nos primeiros dias de funcionamento do corredor Vila Nova Cacheirinha na zona norte de São Paulo, o primeiro a utilizar o ônibus de cinco portas. Aliás, esta invenção contribuiu decisivamente para a redução da implantação de corredores uma vez que o custo por quilômetro caiu de 11 milhões de dólares para 4 milhões (no início dos anos 90) se comparados com os corredores tradicionais – sem os ônibus com a porta pela esquerda – já existentes em São Paulo e em Curitiba.

Às cinco da manhã fui verificar se estava tudo correndo bem. Havia uma fila de umas trinta pessoas trazidas por onibus menores de linhas alimentadoras, e uma série de onibus no terminal esperando o horário para começar a funcionar no corredor. A primeira da fila era uma jovem que não quis entrar quando o primeiro veículo chegou. Achei aquilo estranho: uma pessoa se recusar a entrar num onibus absolutamente vazio com fartos lugares para escolher… Cinco minutos depois um novo onibus parou e a jovem também se recusou a entrar. Não resisti e fui indagar porque ela não havia entrado. A resposta foi simples. Não entrou porque chegaria muito cedo no serviço e o local onde trabalhava ainda estaria fechado, não sendo seguro ficar do lado de fora. Perguntei então porque ela chegara tão cedo? Respondeu que ainda não tinha confiança no sistema… O trajeto, que antes do corredor demorava mais de uma hora, agora ela poderia fazer em 25 minutos!

Construção de Corredores em marcha lenta. Os dois prefeitos seguintes – Maluf e Pitta – não deram continuidade ao projeto de construção de novos corredores. Se isso tivesse acontecido seria preferível para setores da classe média baixa usar um transporte rápido e gratuito ( no caso da tarifa zero ter sido aprovada) e não o automóvel. O uso deste último seria mais demorado e os custos bem mais elevados. Mas isto infelizmente não ocorreu. Os corredores foram retomados na gestão de Marta Suplicy, alguns foram construídos, mas não na escala necessária para tirar o atraso. Nas gestões seguintes de Serra e Kassab a construção de corredores foi praticamente abandonada. Na gestão do atual Prefeito Fernando Haddad dos 150 km prometidos nenhum corredor novo foi ainda inaugurado. O círculo virtuoso – mais transporte público gratuito (ou tarifas baratas), melhora no transito, melhora no transporte público gratuito – que poderia ter sido um ponto de inflexão a partir dos anos 90, com a vitória do público sobre o privado simplesmente não aconteceu.

A Solução para as Mega Cidades. Cidades monstruosas do ponto de vista do tamanho de suas populações, como Tóquio ou Seul somente conseguiram resolver o problema dos hiper congestionamentos quando a maior parte da população passou a ser transportada sobre trilhos. E especialmente nas linhas de metrô.

Nos anos 60, Seul e São Paulo dependiam de ônibus para o transporte de seus habitantes. Em Seul inclusive os ônibus eram tão superlotados que havia empurradores de pessoas para dentro dos mesmos – em alguns casos de empurradoras, pois as mulheres também desempenhavam a função – e o transito era infernalmente congestionado. Hoje, passados mais de 50 anos embora existam congestionamentos nos horários de pico estes são pequenos. Mais de 500 km de linhas de metrô se encarregam de transportar as pessoas pelo sub solo, complementados por linhas de ônibus trafegando em corredores. Em comparação, a rede de São Paulo não alcança os 100 km para uma população semelhante. Sei que implantar mais 300 ou 400 quilômetros de linhas de metrô demandará recursos absurdamente elevados. Mas com tarifa zero ou sem ela, será um passo inevitável. Um de nossos problemas é encontrar novas fontes para financiar um investimento desta magnitude.

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